Das coisas quebradas . 2012

Entre autonomia e fluxo de comunicação :: a rede das coisas quebradas

A instalação “Das coisas quebradas”, trata do fluxo de comunicação que nos rodeia e de sua potencial transformação em dejetos. Somos usuários de um sistema em teste contínuo, que jamais estará pronto. Utilizamos hardwares disfuncionais e nos deixamos regular por redes que cada vez mais avançam sobre nossas vidas. A onipresença da comunicação aumenta e passamos a ser agentes, operadores e reféns desse fluxo. “Das coisas quebradas” é uma máquina autônoma, que toma suas decisões a partir da intensidade dos campos eletromagnéticos que pairam sobre nós. É a simulação física de um mecanismo contínuo, que opera entre as redes e o mundo real, onde a autonomia eventualmente caduca, os princípios se mostram obsoletos e percebemos que estamos na era da Internet das coisas quebradas.

Das Coisas Quebradas é uma instalação-maquina cuja autonomia se vale dos fluxos eletromagnéticos existentes no espaço onde ela é instalada. De forma insistente, dramática e irônica (se essas podem ser qualidades de uma máquina), ela repete a ação de esmagamento de celulares obsoletos ou cujo uso já não é mais desejado.

O projeto converte o espaço informacional que nos rodeia em um sistema “objetificado”, que representa um processo geralmente invisível, de transfor- mação de dados em inutilidade. A máquina tem como input as variações de leitura dos sinais que circulam no espaço aéreo (sinais de Radiofrequencia RF, ou campos/ondas conhecidas como Extreme Low Frequency ELF ou Electric Magnetic Fields), cuja saturação em determinados ambientes pode ser preocupante em vários aspectos.

A partir desses dados, o sistema se acelera e executa movimentos que culminam com uma ação destrutiva dos aparelhos estocados na máquina (ou dispensados pelo usuário), o que para muitos pode representar uma espécie de acerto de contas com o consumismo associado às tecnologias que observamos hoje.

 

Em seu conjunto de relações, o projeto sugere um pensamento crítico a partir de uma condição onde todos são veem responsáveis pela que ocorre nos espaços de circulação pública. Seu funcionamento leva em consideração um fluxo de informação que é produzido coletivamente, em interações entre o público e o sistema que vão além da interatividade imediatista comum à maioria dos projetos de arte digital

Das Coisas Quebradas busca dar conta de determinadas questões reincidentes na obra do artista, tais como: a instabilidade das mídias, as oscilações de linguagem percebidas nos meios de produção técnica de imagem, o caráter anacrônico dos meios audiovisuais em tempos de portabilidade, o con- sumismo e o fetiche ligado aos sistemas tecnológicos. O projeto dá continuidade de certo modo às pesquisas presentes no projeto Mobile Crash (performance audiovisual e instalação interativa), que comenta a constante (e crescente) obsolescência típica das mídias móveis recentes.

A leitura que o sistema faz do espaço aéreo é emblemática, associando por um lado os dispositivos da comunicação interpessoal à produção de obsolescência, mas sobretudo questionando a respon- sabilidade de cada um na formação e sustentabilidade dos chamados ambientes informacionais.

Funcionamento

Um tubo de acrílico com cerca de 2 metros de altura contém centenas de celulares e outros aparelhos de pequeno porte em desuso. Embaixo há uma abertura, uma pequena porta que abre segundo uma rotina que parece pré-definida. Um dispositivo age sobre essa portinhola, que ao abrir, deixa passar a cada momento, um aparelho celular, que cai num nicho que fica sob o alvo de uma grande morsa mecânica.

O sistema tem um ritmo lento e que causa curiosidade. Vários módulos aparecem integrados, explicitando a precisão precária dos movimentos: o mecanismo que empurra e dispensa os celulares, as engrenagens e correntes acionadas pelo motor que move a morsa hidráulica, um nicho de escoamento do material dilacerado. A lentidão obedece a padrões dinâmicos: em um fluxo de visita normal, apenas a cada 3 horas acontece o esmagamento de um dos aparelhos dispensados pelo funil. A partir da leitura do campo eletromagnético no espaço, caso haja um fluxo in- tenso, o sistema se acelera a ponto de aumentar para cerca de 30 aparelhos a cada 6 horas. Caso não hajam conversas ou uso de celular no ambiente, o sistema se detém, operando em ‘slowmotion’.

A cena parece interessante em meio aos destroços dos aparelhos – para muitos, é primeira vez que se vê as entranhas desses aparatos. Ao lado da traquitana, um monitor LCD mostra um gráfico, que mesmo parecendo abstrato à primeira vista, expõe o fluxo das ondas eletromagnéticas no ambiente, nos informando sobre a interação que ocorre no sistema. Uma série de outras informações relativas à leitura da densidade da potência no ambiente (milliwatts por metro quadrado – mw/m2) são escritas na tela, nos permitindo entender o que acontece entre as medições e o funcionamento da máquina.

Através desse componente digital da máquina, podemos saber por exemplo, qual foi o pico dos sinais nos últimos minutos, quando o sistema iniciou as operações e há quanto tempo está em funciona- mento. A idéia é que o sistema ofereça informações detalhadas, como o tempo decorrido desde que foi destruído o último celular, bem como quando vai ocorrer a destruição do próximo. Todo esse conjunto de informações faz parte da intenção de tornar visível algo que não apenas circula na forma de onda, mas que geralmente nos é omitido (numa tentativa de “clareamento” das caixas pretas, como diria Vilem Flusser) visando a abertura de sistemas fechados, que permanecem como herméticos ou como tabus quando se menciona radiofrequência produzida por roteadores, celulares e outros sistemas largamente utilizados à nossa volta.

Como forma de pontuar os eventos e as ações disparadas no espaço, o som relativo ao aumento das intensidades de sinal eletromagnético, bem como a própria ação de esmagamento produzida pela morsa, é amplificado através de um circuito de áudio, que deve envolver um mi- crofone direcional para a captação dos ruídos produzidos durante o esmagamento, bem como pela transformação dos dados visualizados nos gráficos em pulsos sonoros.

Uma série de evidencias (ver links e referências ao final do projeto) nos faz acreditar que o ritual da morsa hidráulica quebrando cada aparelho é algo esperado, desejado por um público que guarda sentimentos ambíguos e contraditórios com relação ao uso de determinadas tecnologias.

O fluxo de comunicação aumenta e passamos a ser responsáveis por esse fluxo. É o espaço que nos rodeia, permeado de consumo, de va- lores, de ideologias, de informação privada circulando em espaço público. Se não nos sentimos ainda responsáveis, deveríamos começar a pensar mais nisso tudo. Os dejetos se acomodam, o lixo desaparece de nossas vistas, quase tudo parece esvair. Até que um novo estrondo ocorra, e percebemos que o incômodo permanece.

 

documentação em vídeo:

 

ficha técnica:

 

Das coisas quebradas, 2012

Máquina de consolidação de obsolescência a partir de campos eletromagnéticos)

 

concepção: Lucas Bambozzi

desenvolvimento tecnológico: Radamés Ajna

montagem e mecânica: Leonardo Ceolin

apoio técnico: Guima San

assistência e produção: Luciana Tognon

> projeto comissionado pela Mostra 3M de Arte Digital

 

ver também post:  http://www.lucasbambozzi.net/index.php/2012/08/das-coisas-quebradas/

ver desdobramentos em Gambiólogos 2.0: http://www.lucasbambozzi.net/archives/3094

+ fotos:

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complemento:

Entrevista de Lucas Bambozzi a Giselle Beiguelman a respeito da participação de DAS COISAS QUEBRADAS na exposição Tecnofagias – Mostra 3M de Arte Digital (agosto/setembro de 2012)

Giselle Beiguelman: Como você relaciona a obra que expõe na Mostra Tecnofagias com o conjunto da sua obra? (Você diria que ela dá continuidade a questões presentes em outros projetos? Quais? Ou esse é um projeto particu- lar ou que marca uma novo direcionamento em seu trabalho?)

Lucas Bambozzi: O projeto “Das Coisas Quebradas”, é de fato a continuidade de um ou mais projetos anteriores – sendo um deles a instalação Mobile Crash (2010 – que obteve menção honrosa no Ars Electronica 2010). Executar o desdobramento dos trabalhos que o antecedem é uma oportunidade de aprofundar em tecnologias e questões que permeiam um percurso anterior — e são exemplares as curadorias que não apenas dão atenção a esse processo mas disparam novas possibilidades.

Me parece que alguns projetos demandam essa continuidade, como se não se resolvessem em uma única proposta. E acho também que, revendo um certo percurso, vejo que não persigo muitos temas, havendo um alinhamento de meus projetos entre uma meia dúzia de questões, que continuam a se renovar, em função das mídias que se en- trecruzam, dos ‘memes’ que se contaminam, da Internet que sai pra fora da rede e nos impacta em outros âmbitos. Mas também em função de uma necessidade pessoal de revisitação de questões, a partir de um amadurecimento diante dos temas. Algumas dessas questões são reincidentes e suas possíveis palavras-chave seriam: intimidade, sociabilidade, mediação, vigilância, controle, privacidade, precariedade, obsolescência, baixa resolução, engenharia reversa,

GB: A mostra deste ano tem como tema Tecnofagias; Ciência de Ponta/ Ciência de Garagem. Como você se posiciona em relação a essa abordagem? Como vê o seu trabalho nessa perspectiva?

LB: Poderia dizer que essa abordagem se cruza com alguns dos temas mencionados [pergunta anterior] que venho perseguindo, ou sendo vítima, de tempos em tempos. Na ambivalência entre ciência de ponta e ciência de garagem, sempre me afinei mais com as perspectivas de quem está dentro da garagem. Em tempos de euforia diante dos vídeos da alta resolução, permaneci buscando as estéticas associadas à baixa resolução. Diante das expectativa de alargamento das bandas de internet, segui buscando formas de uso das conexões mais lentas, em formas que demandariam menor tráfego. Diante do cinema 4k venho ainda acreditando na profusão de telas pequenas ou na redistribuição das bandas em canais que representem maior número de produtores.

Dentre outras intersecções que me ocorrem, entre o tema e minhas próprias conexões, lembro que em 2005 fui um dos organizadores do festival Digitofagia (http://digitofagia.midiatatica.info/), que propunha colocar foco na emergência desse contexto. Como dizia na época o saudoso pesquisador e tecnólogo autodidata, Ricardo Rosas (mentor do Digitofagia) as práticas endêmicas no Brasil incluem a precariedade, a gambiarra e a apropriação tecnológica.

Se até então Ricardo reclamava não haver uma teoria que contemplasse tais práxis, o tema Tecnofagias endossa o corpo de um pensamento hoje mais visível, que continua a crescer em pertinência.

GB: Com relação ao Brasil, você se definiria como um artista brasileiro, porque nasceu e/ou desenvolve seu trabalho no Brasil, ou porque identifica alguma característica em seu trabalho que o particulariza como tal? (Seja qual for sua resposta, esclareça sua posição).

LB: Sou brasileiro a ver o mundo dessa perspectiva peculiar, meio enviesada e meio de esguelha, precária às vezes, em vários aspectos. Não busco essa condição por estratégia, nem acho que há arquétipos desta natureza no que faço. Mas a sensação de estar à margem me é familiar, está de fato presente, independente das teorias. E já ficou muito atrás o tempo em que evitava tal caracterização.

Por outro lado, cheguei a iniciar trabalhos fora do país que a princípio não tinham uma relação com uma condição associada o Brasil. Mas em algum momento as abordagens acabam se aproximando, tendo temas ou estéticas como atratores. Ou se aproximam os contextos, tendo em vista os deslocamentos culturais ou os efeitos da globalização.

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