Sobre documentários – Festival É Tudo Verdade

“É Tudo Verdade – 15 anos” – Ilustrada Folha de S. Paulo, 2010

1- Na primeira edição do “É Tudo Verdade”, há 15 anos, houve 40 filmes brasileiros inscritos; dois deles estrearam nas salas de cinema. Este ano, foram 116 as inscrições; em 2009, 36 documentários estrearam no circuito (o que equivale a 40% das estreias nacionais). Sei que podem ser várias as explicações para esse salto. Mas quais são, para você, as principais razões para a transformação do documentário num produto audiovisual mais forte no Brasil?

Lucas Bambozzi: Creio que há um acontecimento de mão dupla: o “É Tudo Verdade” aposta no documentário e com isso cria um ambiente favorável à produção, veiculação e visibilidade para o documentário. Assim a produção que emerge a partir desse contexto acaba endossando também o festival. Mas acredito que a aceitação maior do documentário (e não apenas no Brasil), deve-se mesmo a vários outros fatores, como a própria introdução de linguagens antes consideradas “estranhas” no âmbito do cinema. Isso tem, por sua vez, a ver com recursos de acesso aos meios de produção (tecnologias relacionadas às câmeras e edição); com uma suposta ampliação do consumidor de imagens “alfabetizado visualmente”; com novas estratégias de divulgação por parte de produtores e distribuidores; com uma renovação dos circuitos de exibição. Nessas especulações, me interesso sobretudo pela movimentação das linguagens. Um público maior passa a aceitar linguagens e narrativas antes acessíveis apenas a um público restrito (frequentador de festivais e mostras específicas) e isso expande o que se entende por cinema.

Costumo dizer também que assuntos antes banais começam a ser explorados de uma forma estratégica, com vistas a se tornar algo de interesse documental. O outro, o imediato, a simplicidade ou os limites da vida (assim como o interior do país, os ambientes inóspitos, o sertão, a paisagem desconhecida, o que há no mundo de intenso ou de selvagem) sempre produziram interesse, mas nunca foi tão fácil registrar, documentar o mundo à nossa volta. Levar um contexto particular, inacessível, para outros circuitos, também passou a fazer parte de uma estratégia.

Mas há também o contexto “fabricado”, a realidade forjada, a intimidade rasa, a verdade ficcionada, ou seja, existem arremedos de linguagens e mimetismos de linguagem que simulam, mais do que nunca, uma suposta estética documental, que acaba também reforça esse pensamento de disseminação do documentário.

2- Você fez “O Fim do Sem-Fim” em 2000 e “Do Outro Lado do Rio” em 2004. Justamente nos anos deste “boom”, você não lançou nenhum documentário, tendo se dedicado mais às instalações e vídeos. Isso se deve a razões artísticas/pessoais ou teria a ver com esse novo momento do documentário no Brasil, talvez mais próximo do mercado?

LB: Sofro da vontade de aprender o que não sei fazer. Quero dizer que ao me dedicar a um projeto, me interesso pelo que aquilo vai me ensinar em termos de linguagem. Não abandonei o processo documental, pois ele está presente nas minhas instalações [explico isso adiante], mas me distanciei do formato documentário para aprender outras coisas, me lançar em outros desafios. Mas talvez tenha também me frustrado em ver uma crescente produção de documentários repetir cacoetes e fórmulas bem conhecidas. E ver isso sendo aclamado como inovação de linguagem, se sobrepondo a tantas outras experiências, me fez perder um pouco da motivação. Especialmente porque fui vendo o quanto o sucesso ou não de um filme, seja documentário ou não, depende muito mais de outras estratégias do que do mérito de sua linguagem ou de sua potencialidade audiovisual.

Os dois filmes que vc cita não tiveram recursos mínimos para um lançamento no momento adequado. Ambos foram conduzidos, inclusive no lançamento, com esforços muito pessoais, em estado de fragilidade financeira e de produção. Lançamos O Fim do Sem Fim com uma única cópia em 35mm em 200 e 2001 – sim, houve um segundo lançamento produzido pela Vânia Catani, mas ocorreu 7 anos depois, num momento em que o filme já nao apresentava maiores novidades. Do Outro Lado do Rio foi enviado para muito poucos festivais, economizava-se em serviços de correio expresso. Um filme tem um tempo limitado para fazer um bom circuito (não mais que dois anos). Isso é muito exaustivo e em alguns momentos pensei duas vezes se queria repetir essa mesma saga, que tem muito pouco de criativo. Por outro lado, fazer instalações (me dedico a projetos deste tipo desde 1996, e de 2005 até hoje essa tem sido minha prioridade), pode ser ainda mais complexo. A maioria das que fiz possuem elementos documentais (captados como se fossem um documentário) e isso de alguma forma afirma uma coerência que me agrada. Mas muitos destes projetos foram expostos uma única vez, por serem projetos “site-specific” ou por demandarem recursos técnicos complicados.

Mas não tenho nenhuma ‘bronca’, as dificuldades me motivam. Tenho novos projetos de documentário e no ano passado finalizei um novo documentário (“8 ou 80” – underground, poesia, performance, música), dirigido em parceria com Rodrigo Minelli. Mas acabamos nos esquecendo de inscrevê-lo no “É Tudo Verdade”. Creio que ele seria bem aceito.

3- A seu ver, essa quantidade de estréias no cinema é, de maneira geral, boa para o documentário ou esse possível excesso acabaria por confundir o espectador? A sala de cinema é mesmo o melhor destino para todos eles? Em outros países, alguns desses filmes iriam direto para a TV, não?

LB: Acho bom que hajam muitas opções. Mas isso de fato pode confundir o público, que cada vez mais vem sendo empurrado para dentro de shopping centers (em cidades como Salvador ou Belo Horizonte creio que não há mais cinemas de rua) para compartilhar dessa situação teatral e social que é a sala de cinema. E há vários outros elementos complicadores para o espectador, não mais apenas a TV, como os canais online, além dos formatos audiovisuais que começam a circular de várias formas (via Bluetooth, wifi ou redes de telefonia) através das mídias móveis. Esse é um campo que me interessa, pela possibilidade explorar novas possibilidades em situações de cruzamentos entre mídias. As telas pequenas devem continuar pequenas por um bom tempo ainda, e há que enfrentar esse contexto, produzindo criticamente para esses novos circuitos que se formam.

4- Muita gente acha que, hoje, a ruptura e a invenção, no cinema brasileiro, estão muito mais no documentário que na ficção. Você partilha dessa visão? Se sim, por que a ousadia teria encontrado mais abrigo nos documentários que na ficção?

LB: Nao gosto muito dessa contraposição ou ‘antagonização’ entre documentário e ficção. Do Outro Lado do Rio por exemplo é um documentário narrativo, de percurso, que acompanha determinados personagens (na região de fronteira entre Brasil e Guiana Francesa). Ao seguir o filme em suas exibições, observei que muitas vezes o espectador espera um fim ou conclusão para determinados personagens (de vida!) como se eu tivesse total controle sobre suas ações e rumos – como se essa possibilidade pudesse ser definida a priori, em roteiro. Ora, eu me deixo ser conduzido também, e essa é a meu ver uma das riquezas do formato documental. Mas o que quero dizer é que o próprio espectador deixa de estabelecer critérios para definir se o que esta vendo é um documentário ou uma ficção. A partir de seu envolvimento com a narrativa ou com o encadeamento visual, isso deixa de ser crucial para a fruição. Continua sendo importante, mas a uma certa distância, num nível mais intelectual, de análise de linguagem.

5- Há 15 anos, um festival como É Tudo Verdade recebia filmes muito mais tradicionais. Hoje, a linguagem _ muitas vezes mais do que o tema _ é uma questão fundamental do documentário. Você acha que isso tem a ver com a influência exercida pela videoarte (com você, Carlos Nader, Cao Guimarães etc.)?

LB: Acho que de alguma forma comentei isso na sua primeira pergunta. A videoarte (ou o que se produziu em vídeo experimental nos anos 70, 80 e 90) foi para muitos a iniciação em formas de percepção de narrativas não usuais, de absorção de elementos estéticos complementares à narrativa. Isso inclui experimentações hoje já incorporadas à TV e ao cinema, como texturas visuais, sobreposições de vários layers, câmeras subjetivas, eixo impreciso, cortes violentos, montagem rítmica ou planos extremamente lentos). Alguns negam essa influência porque talvez gostariam de ser vistos como fundadores de novos parâmetros estéticos. Mas a produção de vídeo (e também de um cinema experimental mais radical) já havia iniciado muitas dessas supostas novas estéticas. Não entendo o real motivo de alguns negarem isso.

7- O meio cinematográfico brasileiro está aberto, hoje, para o artista visual ou ainda há uma barreira separando esses dois universos?

LB: Acho que os meios e circuitos (tanto audiovisuais como na arte) ainda não são permeáveis o suficiente. Há preconceitos, reservas de mercado, feudos institucionais e curatoriais, desavenças ridículas, preferências suspeitas. Não sei se isso é pior no cinema ou na arte, mas penso que há pouca pesquisa por parte dos curadores e selecionadores de festivais ou mostras. Eles não se movem muito, permanecem dentro dos circuitos já conhecidos, dando a perceber uma certa acomodação, uma falta de interesse pelos movimentos dos artistas. Por sua vez, o realizador ou artista tem que provar o tempo todo seu valor (como numa bolsa de ações), dizendo o quanto está apto e inserido em determinado circuito, para não ser expelido por um mercado ávido por novidades. Há muita vaidade e articulação de bastidores. Então vejo sim barreiras, e de vários tipos. Por exemplo, venho de uma formação e prática ligada à comunicação e o circuito da arte nem sempre dá boas vindas a esse cruzamento. As vezes me sinto não fazendo parte de nenhum dos circuitos existentes. E basta que você se dedique a um projeto em uma outra área para que vc seja esquecido na área anterior. Fala-se tanto em confluência tecnológica e de linguagem mas poucos a praticam efetivamente. Mas mesmo diante de todo esse ‘intrincamento’, as coisas estão de fato mais fáceis para as novas gerações. Eu levei 6 anos, desde que comecei a produzir, para ter minha própria câmera. Hoje o cenário é bem diferente e se mostra mais aberto pelo menos no aspecto da acessibilidade, sendo menos refém também de padrões de qualidade. As imagens, pobres ou ricas (de alta ou baixa definição) convivem muito melhor no ambiente atual.