A vida mediada

Texto escrito entre 2005 e 2006, publicado no catálogo da primeira edição do Festival arte.mov

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A recente proliferação de câmeras miniaturizadas, agora embutidas nos telefones celulares estão gerando coleções de momentos emotivos, ‘calorosos’ e particulares que provavelmente seriam esquecidos, alimentando um tipo de obsessão por uma estética da intimidade. As tecnologias dos telefones com câmeras embutidas, computadores que se pode vestir, mídias táteis (superfícies hápticas), dispositivos baseados em localização, mensagens instantâneas e voz sobre IP (VoIP) tentam oferecer a idéia de conforto, um tipo de ‘privacidade onipresente’ estrategicamente próxima da intimidade. Mais que descrever a instância tecnológica (celular), os telefones celulares trazem em si a noção de mobilidade, descrita como ‘zonas íntimas temporárias’ portáteis (TIZ) por Matt Locke.[1] O termo TIZ toma emprestado o TAZ (Zona Autônoma Temporária), de Hakim Bey para referir-se a eventos e ações poéticas que sugerem mudanças sutis na realidade social, que buscariam um ‘modo mais intenso de existência’. Mas ainda é possível pensarmos a intimidade como um terreno da intensidade, prazer, proximidade, fruição ou apreciação?

Não é apenas a esfera da privacidade que está se tornando pública: a da intimidade também. O surgimento de certas tecnologias de comunicação (apelidadas em  inglês de ‘intimate technologies’) deixou ainda menos claros os conceitos relacionados a intimidade, privacidade e realidade. Sara Diamond diz: ‘As novas tecnologias que utilizamos para aumentar a intimidade são exatamente as mesmas que são utilizadas para abrir a arena social da descoberta acerca de assuntos outrora privados’ (2002: 3). Na atual onda de aparelhos sedutores, cheios de promessas de eliminação das distâncias entre a vida real e suas possibilidades representacionais, todos trazem uma noção ‘ideal’ de privacidade, que seria uma porta aberta para uma intimidade fácil e segura. Aparelhos elaborados com finalidade de representação, como toda câmera, atendem o propósito de ligarem à nossa memória todos aqueles detalhes fugazes e momentos calorosos que nós provavelmente esqueceríamos.

Um anúncio feito recentemente pela Microsoft enfatiza o quanto a observação do contexto das tecnologias de mediação leva a práticas e anseios que afetam nossas noções de intimidade e privacidade.

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A SenseCam, considerada um tipo de diário visual, foi projetada para ser usada em volta do pescoço. Ela pode colher imagens quando há movimentos abruptos, alterações de temperatura, variações de luz e até mesmo mudanças na freqüência cardíaca usuário, captando momentos de alegria ou tensão na vida de cada um. A Microsoft também sugere que o diário pode ajudar as pessoas a reconstruir cenas, lembrar onde um objeto foi esquecido ou registrar momentos especiais como um jantar agradável. O diário é capaz de tirar 2.000 fotos automaticamente e funciona 12 horas por dia sem que o usuário tenha que fazer nada. (USATODAY.com 04/03/2004) [2]

Para além da capacidade de ‘representação automatizada’, esse tipo de câmera sugere que as fronteiras entre a vida privada e pública tendem de fato a desaparecer. A penetração da câmera em ambientes públicos poderia conferir às pessoas a qualidade de um cyborg que tudo percebe, assim substituindo qualquer participação na vida pública por uma documentação passiva sobre os acontecimentos do dia-a-dia. Resta questionar o quanto isso é bom ou ruim.

Desde que as informações pessoais tornaram-se um bem de valor, tal como um produto de mercado, tanto a privacidade como a intimidade revelaram-se os ícones mais essenciais e óbvios de tal valor. Como qualquer outro bem, a intimidade apresenta uma significação esteticamente construída, o que se torna claro quando está ligada à idéia de proximidade ou é o resultado de processos de mediação tecnológica – através do acesso instantâneo à privacidade.

Além disso, a noção que temos de intimidade adquire novas configurações e significados dependendo dos sistemas tecnológicos aos quais está ligada. O veículo defiine a experiência e interfere na mensagem. Distintos níveis e nuanças da intimidade podem ser obtidos diferentemente através de meios diversos tais como por telefone, e-mail, aparelhos VoIP, sensores de toque ou via webcams.

Estes aparelhos de comunicação tecnológica combinam a aspiração comum às interfaces que se pretendem como pontes com as realidades estabelecidas, não necessariamente promovendo qualquer participação verdadeira na realidade social, tamppouco um contato direto com o espaço externo no sentido ansejado por Zygmunt Bauman em City of Fears, City of Hopes. Eles tentam introduzir a noção de que o acesso a ‘realidades’ distantes e separadas – freqüentemente entre esferas privadas – equivale a compartilhar experiências em domínios públicos, em operações de substituição essencialmente estéticas.

Antes de proporcionar qualquer experiência legítima do envolvimento na vida pública, ‘a capacidade de conectar’, ou a ‘sensação de participação’ sugerida por anúncios publicitários parece ser o que melhor descreve suas capacidades de ‘construção de realidades’.

Segundo Maurizio Lazzarato, as estratégias de representação desempenham um importante papel na definição do que seria uma nova forma de alienação na sociedade atual, resultado de um capitalismo com acento semiótico. As ‘estéticas de intimidade’ estariam relacionadas ao modo como domínios distintos são mediados, semelhantes a um efeito da vivência da ‘realidade’, mas como uma simples sugestão estética, uma ocorrência intangível. Assim, a representação das realidades e de situações banais da vida por meio de sua mediação, configuram formas ‘inventadas’, formas de substituição de determinada ‘realidade’ por ‘realidades de mídia’. Aceitar os mundos inventados como uma experiência real é cair nas armadilhas da representação, na medida em que a abundância de imagens produzidas pela mídia todos os dias pode comprometer o que consideramos ‘real’. Participar do mundo de signos inventados descrito por Lazzarato, como se construído através de um tipo de ‘afirmação-arranjo’ não é o mesmo que se envolver nos espaços de troca e compartilhamento possíveis na cidade. Estas tecnologias não perfurariam a ‘bolha’ que separa as relações privadas do espaço público da cidade e suas diferentes ‘realidades’.

Bauman vê nossa sociedade atual como uma distopia que surgiu no lugar de um modelo ancorado em algum lugar entre os regimes totalitários de Orwell em 1984 e de Aldous Huxley em Admirável Mundo Novo. Esta nova distopia está configurada em um mundo de fluxos, ‘onde as redes sociais e de ação coletiva estão irreversivelmente desintegradas como um efeito colateral do crescimento de um tipo de poder evasivo e astuto’. A desintegração social não é apenas uma condição atual, mas o resultado destas novas técnicas de poder.

Como diz Brian Holmes, novas formas de imposição do poder moldam ‘sociedades profundamente doentes e que cobrem suas conspirações patológicas com mentiras deliberadas’.[3] Aspectos outrora utilizados para descrever o contexto de fim de século ainda nos servem para indagarmos acerca de nosso atual estado das coisas.

O estilo de vida em rede da sociedade tecnológica, direcionado para executivos e empreendedores, com um tempo comprimido em um estado de ‘eterno presente’, foi identificado por Trebor Scholz como ‘instrumento de opressão e mão-de-obra informal que espremem o trabalhador até retirando-lhe sua energia e criatividade’.[4] Um antídoto possível contra este cenário seria um maior comprometimento em analisar o mundo que nos cerca. ‘Precisamos pensar e sentir’[5], diz Trebor.

Uma obra de arte produzida de modo consciente oferece uma análise do mundo que nos cerca, pode nos levar a ‘pensar e sentir’. Mas como essa nova arte baseada nas mídias e tecnologias de mediação pode proporcionar essa possibilidade sem ser comprometida por sua própria estrutura sempre  dependente das tecnologias corporativas? Os artistas estão fadados a discutirem hermeticamente a autoridade artística e política cultural, mesmos quando estão tentando se libertar da bolha e sugerir deslocamentos e mudanças sociais com sua arte?

Até que ponto as lacunas entre os assuntos privado-privado e a necessidade de participação na vida pública é uma síndrome tipicamente socio-cultural? (relacionada a cidades como São Paulo, Lima ou Joanesburgo, onde é impossível chegar a realidades cruas devido a relações de classe cruelmente desiguais?) Seria uma posição tipicamente conservadora considerar que as experiências reais (aquelas ‘que valem a pena’) devem incluir necessariamente ‘referências físicas’?

A mudança das fronteiras entre as esferas privada e pública, resultado da disseminação de tecnologias onipresentes e invasivas (os chamados pervasive systems) não têm ajudado a evitar dicotomias como representação e mediação, ‘realidade forjada’ e realidade social, Como uma responsabilidade desafiadora para os artistas atentos ao potencial das novas tecnologias de comunicação e mediação, vislumbra-se modelos de redes que funcionariam como interfaces sociais entre realidades distintas, que estimulariam as pessoas em uma participação na construção de um espaço de experiência e vida pública. Pode-se encontrar nos novos sistemas que surgem as ferramentas com funções adequadas para produzir formas de conscientização com relação a procedimentos potencialmente alienantes? Será possível utilizar esses instrumentos para perfurar a ‘bolha’ que nos impede de compreender melhor o mundo ‘exterior’, para além das tecnologias ditas ‘pervasivas’?

Ao combinar algumas destas questões é possível prever um espaço comum para a arte, a política – e por conseqüência e as relações culturais e sociais. Em lugar de aproximá-las ou afastá-las, deve-se explorar zonas de convergências híbridas: a política contaminada pela arte adjacente, e uma arte contaminada pela política circundante.

Pode ser que seja necessário tomar consciência das contradições do sistema da arte e daquelas de nosso próprio trabalho artístico. Devemos nos deixar transformar pelas convicções construídas a partir da vivência nos espaços reais, tecnologias de mediação e suas armadilhas. Em meio a conflitos e contradições, devemos detectar as urgências que nos tomam como indivíduos, no Brasil ou em qualquer outro lugar, para ‘unirmos corações e mentes’ (obrigado Brian!) e afiná-los com o outro, com o espaço externo, com as realidades mais cruas e imediatas, e quem sabe, criarmos novas articulações, potencializando as capacidades de enunciação, colaboração e trocas efetivas entre as pessoas.

lucas bambozzi

Bibliografia/Referências

Bey, Hakim (1991) TAZ, The Temporary Autonomous Zone,
Ontological Anarchy,
Poetic Terrorism New York: Autonomedia

Diamond, Sara (2002) Quintessence:
Mobolized or Immobolized In The Mobile Era HorizonZero: Banff

<http://www.horizonzero.ca>

Bauman, Zygmunt (2001) Modernidade Líquida tr. Plinio Dentzien, Rio de Janeiro: Zahar

Bauman, Zygmunt (2003) City of Fears, City of Hopes London: Goldsmiths College/University of London

Lazzarato (2003) Struggle, Event, Media Republicart.net <http://www.republicart.net/disc/representations/lazzarato01_en.htm (translation modified).

 



[1] Matt refere-se ao TIZ em sua palestra na Conferência de Tecnologias Íntimas, realizada no Banff Centre em 2002.

[2] Fonte: <http://www.usatoday.com/tech/news/techinnovations/2004-03-04-techfest_x.htm> acessado em: 12/06/2004 para imais finformações na Microsoft: <http://research.microsoft.com/hwsystems>

[3] Fonte: lista de correspondência do Institute for Distributed Creativity (iDC). Thread: Activism now and <http://mailman.thing.net/pipermail/idc/2005-December/000106.html>.

[4] Downtime. Fonte <http://collectivate.net/journalisms/2005/11/19/downtime.html>

[5] Ibidem

 

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