O vídeo em questão – confluências

Texto publicado originalmente com o título: 

“O Vídeo Em Questão – a perspectiva de uma arte do vídeo como referência-chave para a representação”

– Revista IMAGENS – Editora Unicamp – número 1 – abril 1994

 

Muito se tem falado sobre a “finalidade sem fim” do ato poético. Hoje é comumente aceito que a banalidade de determinadas situações sejam descritas com estilo e arrebatamento. Isto seria poetizar, dar sentido ao aparentemente inútil. É também a ponta de um mecanismo legitimador de obras: objetos, pinturas, quadros, fotografias, a partir do qual passamos a atribuir, quase que “magicamente”, o conceito de arte. Mas não vamos cair nessas armadilhas.

A comunicação é básica.  Dispensáveis são determinados conteúdos e usos que normalmente atribuimos à comunicação. A expressividade seria um ganho – não há nada de supérfluo nisso – um acréscimo que enobreceria a mecanicidade da comunicação.

Na procura por uma comunicação não superficial, que possa cumprir uma função expressiva (um pouco como quando a poesia era tida como instrumento e técnica) entramos num terreno mais complexo, imaterial e cheio de incertezas: a perspectiva artística dos meios de comunicação.

Vamos analisar o vídeo à luz dessas premissas.

Enquanto o mundo da arte nesse fim de século procura saídas frente à estagnação e desconfia das inúmeras correntes que assolam a chamada grande arte – eterno retorno à pintura, multiculturalismos, estética do desagradável, ambientes conceituias, etc. – os meios eletrônicos parecem ainda procurar por “entradas” nesse círculo. A algo no ar como se a arte eletrônica pudesse ter decepcionado. Excetuando a obra de veteranos devidamente reconhecidos como Bill Viola, Gary Hill ou Nam June Paik,  este meio também enfrenta problemas com a palavra vanguarda e é assolado por correntes multiculturalistas, que, apesar dos inúmeros aspectos positivos (principalmente os políticos), muitas vezes se expressa de forma maniqueísta em sectarismo racial, militância gay e outras frentes, que misturam discursos de minoria historicamente oprimida à apologia de novas estéticas, atribuindo para sí méritos de renovação.

O que virá depois? Cage escreveu para Paik em 1965: “O campo vibrátil da TV despedaçou nossas artes, inútil juntar os pedaços”1. Nesses destroços (contexto conhecido) procuramos as origens e os fragmentos da arte eletrônica para saber quais seriam seus “defeitos” atuais.

Retrospectiva rápida:

O que acontece hoje? Onde está a promissora produção nacional, vislumbrada por artistas e candidatos a videoartistas desde a década de 70 quando se fazia arte eletrônica no Brasil em uma surpreendente contemporaneidade com outros lugares do planeta onde ela emergia?

Entendemos que o video aparecia para muitos, apenas como meio, e isso era muito bem vindo uma vez que era como que um arsenal de ferramentas auxiliares que surgia para vários fins. Depois muito se discutiu para que o vídeo se despontasse como linguagem, e, principalmente, que linguagem seria essa. Esse é o terreno mais pantanoso e incerto. Tudo seria permitido no trabalho com a imagem eletrônica. E é certo que frustrou muitas tentativas, principalmente aquelas que não levaram em consideração a natureza expressiva do formato vídeo. Cineastas ávidos em passar para o vídeo a condição de lata de lixo das belas-artes2, talvez tenham se decepcionado na perspectiva de “um cinema mais barato” em vídeo.

Passados mais de 20 anos dessa aventura do deslumbramento eletrônico, quais são os resultados, o que se consolidou como obra autêntica e o que passou para esse questionável e frágil universo do que se convencionou chamar de arte? Ou melhor, terá realmente falido o projeto do vídeo como meio de expressão artística? O que acontece nos dias de hoje, além do cansaço e da estagnação em torno desse tema?

Uma pequena radiografia nos permite observar o quanto foi importante o surgimento do vídeo como arte, a começar por quem praticamente a criou, Nam June Paik, artista plástico e compositor subversivo e genial, uma espécie de John Cage das telas eletrônicas. Este anárquico representante do movimento Fluxus e da vanguarda Novaiorquina da década de 60, subverteu literalmente o uso da TV ironizando seu mecanismo e revelando a poesia contida nos sistemas de comunicação, gravação, manipulação e transmissão de imagens.

Os meios eletrônicos rapidamente influenciaram artistas e se difundiram como o instrumental de artistas na California e em Nova Iorque, ocupando galerias e os principais Museus de Arte, que passaram a ter programas de incentivo e financiamento às artes eletrônicas.

A perspectiva de uma arte do vídeo gerou um conjunto de artistas e obras que são referências-chave para se pensar a representação, a televisão, a fotografia, a arte conceitual e outras questões relativas à contemporaneidade.

Alguns exemplos: “Sunstone”, obra simbólica e poética de Ed Emshwiller, um dos precursores no uso da tecnologia de forma realmente expressiva; as experiências conceituais de William Wegmann com seu cachorro Man Ray; “Global Groove”, vídeo de Nam June Paik que usa os feedbacks, a autonomia do fundo e da forma, distorções na perspectiva tradicional, a aceleração, reciclagens  e praticamente todas as idéias com que Paik e toda uma geração de videartistas começou a trabalhar; “Chott-el Djerid” de Bill Viola, que se tornou referência obrigatória sobre a definição, profundidade de campo, desfaçelamento e o tempo nas imagens do vídeo;  “I Do Not Know What Is It I Am Like”,  também de Viola, uma espécie de tratado da percepção e do conhecimento humano; “Death Valley Days”, da Gorilla Tapes (UK), precursor do “scratch-video”, introdutor de técnicas de associação e repetição a partir de imagens de televisão, sempre com nuances políticas;  toda a obra de Gary Hill artista que iniciou seus trabalhos com esculturas e descobriu o vídeo como forma de fluidez do pensamento, da palavra e da expressão; “Cartes Postales” de Robert Cahen, poéticas (como quase toda sua obra) peças em torno do movimento e da paisagem.

A lista de clássicos seria interminável com nomes como Steina e Woody VasulkaNam HooverMarina AbramovicJuan DowneyShigeko KubotaAntonio Muntadas, até chegar em casos específicos e atuais: o húngaro Gusztáv Hámoz, com uma nova forma de tratar da televisão e a política;  Sadie Benning, extrema sensibilidade a partir de câmeras de baixa definição; o videodiarista George Kuchar; com seus vídeos a custo de fita virgem; e o Brasil particular dos brasileiros Eder Santos e Sandra Kogut.

Tudo isso quer dizer simplesmente que o vídeo já tem uma história bem definida e em constante movimento, que em muito se cruza com as questões discutidas pela arte.  Os críticos e escritores de arte, na compilação de seus livros, com certeza não irão se esquecer desses nomes.

 

Caminhos e Referências:

A sintaxe:

Entre as acusações que se faz ao vídeo, frequentemente é observada a sua indefinição de linguagem como um elemento nocivo e transgressor das boas normas cinematográficas. E é bem possível, inclusive, que grande parte da resistência colocada diante do experimentalismo videográfico, deva-se ao impacto gerado pela aparente anarquia e  experimentação de videomakers ingratos à linguagem e “caligrafia” cinematográficas.

Mas definitivamente não há cânones de uma sintaxe estabelecida a ponto de se reclamar nostalgicamente por uma economia da liguagem audiovisual. Algumas propostas de uma sintaxe própria ao cinema se tornaram datadas e falhas em termos de possibilidades. A tecnologia tem atuado como incrementadora e complicadora desse processo.

Marcel Martin , em sua primeira edição de “O Discurso Cinematográfico”,3 descreve as capacidades de expressão e os processos de construção “sintática” da cena a partir do enquadramento e movimentos de câmera: um travelling significaria descrição do ambiente, um zoom, a aproximação na intimidade do personagem, o contra-plongée o enaltecimento, o plongée (mergulho) implica em espezinhamento e por aí vai.  Toda a mensagem realmente significante da história, estaria contudo delegada à ação, diálogos, construção psicológica dos personagens, cenários, etc., assim como que atestando a incapacidade de se dizer algo mais complexo através de recursos essencialmente visuais.

Imaginemos então que essa “cartilha” pudesse efetivamente ditar as vogais e consoantes de um suposto alfabeto. Haveriam então muito mais variáveis que as propostas por Martin, e que a grosso modo, também seriam associadas a idéias e significados.

Seria possível dessa maneira, escrever através de formas visuais, numa relação sensorial a partir  de claros/escuros, ritmo, textura, representações, associações, etc.?  Talvez entendêssemos o quão rico poderia ser essa linguagem e esse alfabeto visual, particularmente num momento em que as novas tecnologias nos colocam mais e mais recursos para a manipulação de imagens, o que, nesse exercício imaginário nos permitiria dizer coisas mais complexas ou mais sutis.

A Experiência Concreta:

Ao longo desse processo de estabelecimento de linguagens, o video tem incorporado nitidamente o legado e as propostas de um cinema rico e experimental que  tem como primeiros representantes a escola soviética dos anos 20 e posteriormentea vanguarda americana dos anos 50.  Pode-se dizer que o vídeo vem reinventando, à sua maneira, este cinema vibrante, construtivista e paradoxalmente anárquico,  incorporando grande parte de seus conceitos, propostas e técnicas, antes diluídas na própria história do cinema. Talvez sejam essas as verdadeiras influências do experimentalismo presente no vídeo, legitimado pela bandeira da busca de algo autêntico  sob o ponto de vista da criação.

É fato que a experiência da montagem Einsensteiniana não rendeu tantos frutos no cinema, em contraposição com a eficiência do ilusionismo proporcionado pela definição fotográfica da realidade aliada à sala escura de projeção.  No vídeo as conjugações sintáticas entre planos, takes e sequências ganharam possibilidades inusitadas revitalizando a perspectiva de um “espetáculo audiovisual de conceitos e sensações” – nas palavras de Arlindo Machado.4

Eisenstein elaborou toda sua teoria com base na escrita oriental, que articula imagens para produzir sentidos. O curioso é observar como a conjugação dessas imagens, (ideogramas) consegue exprimir pensamentos abstratos ou complexos. Há aí o predomínio de uma linguagem causadora de impressões e sensações,  intimamente ligada à compreensão e percepção da forma – articulada, é claro, com o todo que dá sentido ao espetáculo.

Fala-se comumente, em cinema, da emoção como um sentimento superior, relevando-se as sensações a um plano inferior. Tal emoção está intimamente ligada aos gêneros nobres anteriores à invenção do cinema – a narrativa romanceada  do teatro e dos gêneros literários do séc. XIX.5, incluindo aí a valorização do homem, etc.- majestosamente habilitada por Griffith e que vingou curiosamente em função de sua viabilização como produto atrativo-comercial.Resumindo, o cinema nos emociona basicamente a partir de suas estórias. Seriam as formas e relações  com a superfície, capazes de nos emocionar?

O caráter revolucionário do cinema de Dziga Vertov por exemplo, está justamente em negar essas influências como normas para um cinema vigoroso, que pudesse ser mais essencial, pulsante e, justamente,  mais sensorial. No manifesto “Nós” dos kinoks (termo utilizado para os diferenciarem dos “cineastas”)6Vertov diz:

 

“Nós declaramos que os velhos filmes romanceados e teatrais têm lepra.

Afastem-se deles 

Não os olhem

Perigo de morte

Contagiosos!”

(…)

“Nós os conclamamos:

a fugir dos langorosos apelos das cantilenas românticas 

do veneno do romance psicológico

do abraço do teatro do amante…

(…)

Ganhemos o vasto campo, o espaço…”  

 

Por sua vez, Stan Brackhage em “Metáforas da Visão”7,  faz apologia das imagens “não viciadas”,  e nega toda a representação naturalista de forma radical:

 

“Imagine um olho não governado pelas leis da perspectiva, um olho livre dos preconceitos da lógica da composição, um olho que não responde aos nomes que que a tudo se dá, mas que deve conhecer cada objeto encontrado na vida através da aventura da percepção. Quantas cores há num gramado para o bebê que engatinha, ainda não consciente do verde? 

(…)

“Cuspindo propositadamente nas lentes, ou destruindo sua intenção focal, pode-se chegar aos primeiros estágios do impressionismo”.

(…)

“O absoluto realismo da imagem cinematográfica é uma ilusão do século vinte, essencialmente Ocidental”.

 

Não há como esses manifestos não nos remeterem a experiências atuais do vídeo. A perda da profundidade (de campo) trouxe para o vídeo, a superfície – como queria Brackhage. Se tomarmos o conceito de imagem como algo não acabado e que se forma em nossa mente – uma existência entre a “coisa” e a “representação” 8–  a partir do olhar que vagueia sobre uma superfície, a compreensão das formas, cores, texturas e elementos incrustrados nessa superfície , seria a própria ação (é preciso alguma ação) de adentrar literalmente na superfíe da imagem – e, quem sabe, nos emocionarmos com as sensações daí advindas.

A fabricação de Imagens Verdadeiras

O vídeo é também desprezado por não conseguir cumprir com eficiência (?) os requisitos de verossimilhança, de abandono, de sublevação diante do enredo e da história (narrativa clássica). Problemas técnicos de definição e natureza da imagem se somam a quase um século de hábitos relativos a assistir filmes em confortáveis salas escuras, com ingressos pagos, etc. –  o cinema para se adentrar no circuito das artes se apoiou na arquitetura para forjar finas e requintadas salas em que o expectador comum tinha a sensação de partricipar dos inacessíveis espetáculos da época.9 O que dizer do vídeo que surgiu na sala de estar das famílias de classe média?

Assim, vários fatores explicam a flagrante mentira da cena no vídeo, mas ela não deve ser apontada como justificadora de uma suposta fraqueza da imagem eletrônica. A despeito da discussão do que vem a ser uma cena  à qual nos entregamos, acontece que um certo tipo de cinema vem constantemente essencializando a cena (e pricipalmente a ação), retirando a imagem de seu contexto de causalidade narrativa, como forma de carregar a imagem de sentido,  fazendo com que ela própria contenha dentro de sí, esse potencial narrativo e significante. Diríamos que essas imagens são potencialmente avulsas, ou como prefere Nelson Brissac, são fotogramas impossíveis10– esse modo “fotográfico” de presença da imagem contido em determinados “instantes” de certas obras. Se por um lado desnudar a imagem de suas implicações relativas ao “antes” e o “depois” pode restituir alguma verdade a essa imagem, por outro lado, sua plenitude, como sugeriu Godard, poderá ser encontrada justamente nessa união da imagem com outros elementos: o som, o ruído, a textura, o estático, e principalmente nas associações com outras imagens.

O sentido e movimento dessas imagens passam a se dar em direção a seu interior. Suas bordas não são continuações de uma cena “cortada” pelos limites do quadro (abrangência da câmera). As bordas são os contornos ou a “moldura” dos elementos organizados significativamente em seu interior. Vemos exemplos dessa síntese nos últimos filmes de Kieslowski (A Dupla Vida de Veronique, A Liberdade é Azul) e em alguns trabalhos de Derek Jarman (Caravaggio, Eduardo II) onde a opção estética não é uma  mera influência dos novos meios de produção cada vez mais concentrados nas mão da televisão, mas sim o sintoma de um cinema sensível às peculiaridades e possibilidades poéticas de uma linguagem típica do eletrônico. A síntese da angústia do personagem, os instantes de revelação, detalhes em primeiríssimos planos nem sempre identificáveis, o desenquadramento que suja (há bom sentido para o sujo) a assepsia da cena, metáforas e elementos estranhos à linearidade narrativa. Está tudo ali, no centro, organizado e construído no interior do quadro – fotográfico? pictórico? (é bom lembrar que estamos falando de um cinema sem grandes pretensões experimentais).

Infelizmente pesa sobre o vídeo um discurso aniquilador, curiosamente por parte de certos cineastas  que colocam as emergentes qualidades, e a própria natureza da imagem eletrônica a agir contra a obra em vídeo. Frustrações daqueles que viram ali as possibilidades de perpetuar suas historietas e gags e não entenderam as perspectivas de uma linguagem rica e particular, que pudesse inclusive surgir de uma união de naturezas.

Entre os cineastas abertos a uma verdadeira troca de recursos e concepções com o vídeo, J.L. Godard foi o que mais contribuiu para um diálogo e para a dissolução das linhas de separação, muitas vezes de forma absolutamente genial. Mas talvez aquele que tenha melhor aproveitado a expressividade estética dessa união de suportes seja mesmo Peter Greenaway. As experiências realizadas em M is for Man, Music, Mozart e TV Dante, fatalmente culminaram num marco dessa interação que é “A Última Tempestade”. Ali há prenúncios de uma revitalização na obra cinematogáfica que vem influenciando todo o tipo de profissionais da imagem: publicitários, artistas gráficos, videomakers, etc.

Formatos e gêneros já se cruzam há muito. Robert CahenCharles Atlas, Alain Bourges, Eder Santos, Joan Logue, Jem Cohen e outros mesclam elementos do documentário, da dança, do cinema, das artes plásticas. Uma curiosa mesclagem de mídias se confirma.

 

Abstrações:

Com base nas premissas introduzidas até o momento, este texto propõe, sob os riscos da polêmica, a seguinte equação: o video pode estar para a poesia assim como o cinema está para a literatura. Isso pode vir a ser uma verdade constituída não em termos de maior aptidão poética do vídeo, mas em termos de síntese – entendida não como redução mas como amplitude. A síntese e não-linearidade narrativa que o poema é capaz pode muito bem ser transposta para o vídeo. A narrativa aí pode se dar em sua essência. Um poema descreve, contextualiza, ambienta, nos faz ver e sentir. Os excessos são plenamente significantes.

Pelo próprio caminho que o cinema (de modo geral) tomou, parece ter se abrido uma espécie de lacuna, preenchível por obras que nos conectem a outros estados de emoção e nos remetam a níveis diferentes de percepção.  Adentrar nesse universo é passear pelas linguagens, é aumentar a necessidade por estímulos visuais – mais puros e brutos.

Tudo isso é perfeitamente  factível dentro da natureza e espectro de possibilidades do vídeo, mas a transposição de tais conceitos carrega inúmeras outras questões.  Seria a abstração o terreno onde isso pode ocorrer com maior fluidez? É compreensível que a simples sugestão da forma tende a exigir mais do expectador e consequentemente, estabelecer maior sintonia e sublevação. Para haver arrebatamento é preciso estar disponível, é preciso haver entrega.

Videos para os olhos e ouvidos existem em quantidade nos festivais. Mas imagens que sejam também uma maneira de fechar os olhos e sentir até que ponto  o desejo de ver e de ouvir não será mais satisfeito, essas são extremamente raras.

A música seria outra metáfora do essencial: a imagem deve ser sentida,  exatamente como ouvir música. A sensação simples e pura, destituída de significado prévio. O sentir, aos cuidados do ritmo, do crescendo, do arrebatamento. (Não nos esqueçamos que estranhamento e perplexidade, características de muitos trabalhos em vídeo atuais, são também possibilidades de emoção).

Cobra-se muito das imagens eletrônicas e de sua capacidade de nos seduzir, mas  olha-se muito pouco para o interior e essência dessas imagens. A “aventura da percepção”, proposta pelos experimentalistas do passado (Vertov faria vídeo hoje?) reclamava desse mesmo descaso para com as imagens de seu tempo.

A condescendência que se tem no campo das artes plásticas carrega muito de exemplar. A aceitação da experiência se dá sem nenhum questionamento da eficiência de comunicação ou mesmo emoção pretendida. O acontecimento da pintura, por exemplo, é sempre cercado de um ritual há muito desvanecido. A pintura e as artes nobres propõem seu próprio charme a partir do que se pode chamar de “a volúpia da inexistência”, quanto menos existirem, mais glamourosas. É contemplação do “sem sentido” delegada a iniciados.

Mas atribuir sentido (a coisas nulas, banalidades) é fazer poesia, é “magicizar” na opinião de alguns.*

Assim, a arte, a poesia, e algumas formas de manifestação da imagem são aceitas, institucionalizadas, patrocinadas pelo mercado, pelo estado e exibidas com pompa e circunstância – Oscar Wilde: “só é compreensível fazer algo inútil contanto que a admiremos intensamente”.

 

Anos 90

A apologia da experimentação por  sua vez deve estar associada à honestidade em se imprimir a intenção, acima de tudo.

Fora do Brasil Sadie Benning, Francisco Ruiz Infante Tom Kalin, Michael O’Reilley e outros, com seus discursos pessoais, intimistas e despojados, vêm se despontando como os representantes de uma revitalização radical na concepção que se tem do vídeo como obra. São discursos que se segmentam pela imposição de um estilo extremamente autoral e poético e que se deve em parte pelo extremo barateamento dos meios de produção. Muitos estão deixando os dispendiosos sistemas de captação e pós-produção em troca de formatos mais versáteis, onde se pode ter um controle maior sobre o todo, além de poder trabalhar em casa por exemplo. O surgimento progressivo de estações acopladas a computadores pessoais vem mudando o perfil da videografia de muitos. O high tech John Sanborn foi um desses que, ao optar por um sistema mais doméstico, injetou maior vida, ‘calor’ e autoria ao seu trabalho.

Observamos então, que cada vez mais, a intermediação técnica favorece a própria experimentação e a realização de obras mais radicais, pela maior possibilidade de manipulação – a favor das intenções mais díspares.

Por fim, o mito de que os anos 80 foram um tempo de expansão, aventura e experimentação é verdade apenas em parte e geograficamente. Era realmente mais fácil produzir e ter acesso à tecnologia? Havia mais festivais, mostras regulares?

Em vários pontos do Brasil começa a existir um  público extremamente interessado que gera uma demanda por mostras nunca antes vista. Os festivais observam uma crescente descentralização do eixo rio-são paulo, detectada tanto na quantidade quanto na qualidade dos trabalhos inscritos. Cidades como Campinas, Vitória, São Luís e principalmente Belo Horizonte, têm gerado uma efervescência em torno da imagem tipicamente eletrônica que tornou possivel esboçar algo como  uma “cultura do vídeo”.  Nessa última cidade explica-se o interesse dos estudantes e pessoas que passam a ter o vídeo como referência audiovisual, exatamente por não ter vingado ali qualquer movimento em torno do cinema ou de uma televisão que, a partir de um pólo de produção local, criasse e absorvesse profissionais da imagem. Pelo contrário, os interessados na produção de obras audiovisuais encontraram no vídeo um meio legítimo para expressarem suas idéias, independentemente de um mercado sedutor e definidor de padrões – que sequer foi combatido, por praticamente não existir. Isso explica em parte o surgimento de uma produção espontânea e mais experimental e autoral.

Em São Paulo por exemplo, no início dos anos 80, os trabalhos mais conscientes do uso do vídeo como meio expressivo, tiverem de uma certa forma a televisão como uma espécie de alvo, algo a ser combatido. **

De qualquer forma passou o tempo da “postura de videomaker” e do embate com a tv. O vídeo se tornou obra.  Obra com traços de seriedade e de sinceridade autoral. Isso implicou no desencorajamento de muitos projetos que não se caracterizam como tal. Também não se trata mais de procurar uma especificidade. Discusões intermináveis sobre questões da representação cedem lugar a convicções pessoais.

Temos portanto que tomar o cuidado de não elegermos o passado como o tempo de uma projeção utópica. Há surpresas. O espírito mudou.

Esses aspectos aparentemente avulsos nos permite observar que há algo mais complexo no ar. A video-arte (assim como outras manifestações denominadas artísticas) não pode mais ser definida como prática singular, uma categoria perfeitamente definida dentro da cultura contemporânea. Há maior entrosamento, existem categorias que emergem entre as artes.  Sugestão de Fargier: “O vídeo não é uma forma de ser da realidade, é mil maneiras das imagens estarem em outro lugar”11 A realidade já não é problema, já não interessa. Nas artes ou em qualquer lugar, em se tratando de imagens – técnicas – elas serão necessariamente pontuadas pelo eletrônico, pelo digital, na forma de vídeo, uma palavra que cresce semanticamente.  São indícios de uma riqueza ainda não totalmente detectada.

Por esses e inúmeros outros motivos a obra em vídeo merece hoje, atenção especial. Distante de um momento em que vídeo era visto como um apêndice da TV, e fazer vídeo era o pré-vestibular para se ingressar na televisão, e hoje com características  bem particulares, o vídeo deve ser visto pelo que é e muito pelo que ainda pode vir a ser enquanto fenômeno.

Será que teremos de engolir que o que há de mais experimental e criativo em termos expressivos está na MTV? Ou nas novelas da Globo? Onde fervilham ideais de renovação da linguagem?

Esse quase manifesto, procura resgatar o prazer de ver e discutir as imagens, hábito muito propalado nos tempos áureos de efervescência da produção independente nacional e hoje perdido em meio à desinformação e ao estreitamento de visão. É preciso continuar a experiência do vídeo no Brasil. 

 

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OBRAS CITADAS

 

1 – Cage, John – “De Segunda a Um Ano”. São Paulo: Ed. Hucitec, 1985

2 – “O cinema é a lata de lixo das belas artes” – frase de Gláuber Rocha em

“O Século do Cinema”. Rio – Ed. Alhambra, 1985

3 – “A Linguagem Cinematográfica” teve várias reedições desde 1955, sua publicação francesa original. Em 1990 a Brasiliense editou nova versão, revista pelo autor, Marcel Martin.

4 – No texto “O Vídeo e Sua Linguagem”,  Alindo Machado descreve minuciosamente a adequação da montagem intelectual aos propósitos do vídeo. O texto foi originalmente publicado em disquete, na série Ensaios Sobre a Contemporaneidade.São Paulo: , 199?

5 – idem

6 –Xavier, Ismail (org.) – Dziga Vertov – “A Experiência do Cinema”. Rio:

Ed. Graal/ Embrafilme,1983

7- idem

8– Deleuze, Gilles -“Imagem Movimento”. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1985

9 – Ramirez, Juan Antonio – “La Arquitetura en el Cine”. Madri: Ed Hermann Blume,1986

10 – Brissac, Nelson – “Passagens da Imagem: Pintura, Fotografia, Cinema,

Arquitetura” –  Imagem Máquina. Rio: Ed. 34, 1993.

11 – Fargier, Jean Paul -“Poeira nos Olhos” – Imagem Máquina. Rio: Ed.34,1993

 

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